A minha heroína
Sempre te conheci de cabelos brancos e sedosos, quando nasci já os tinhas assim às uns bons anos, segundo me disseram foi de repente, sempre gostei deles, brancos como o sal, fortes como tu e suaves como a maneira que tratavas de mim e de todos nós. Não usavas cá nada daquelas restemengas de supermercado que hoje usamos, lavavas o cabelo com vinagre e amaciavas com um bocadinho de azeite, um dia perguntei porque temperavas o cabelo como a mãe fazia com a salada.
As tuas mãos sempre refletiram o tempo que por ti tinha passado, os dedos tortos de tanto trabalho, mas as palmas suaves com todas as linhas definidas como tu sempre foste.
Não sabias ler nem escrever mas quando ía-mos à Praça da Ribeira não havia peixeira que te metesse um centavo a mais que fosse na conta, e sabias sempre quem era mais ou menos honesto pela conversa que te davam, ainda me lembro que os melhores queijos eram na senhora Alzira que os vendia numa espécie de casinha verde por baixo das escadas que davam acesso ao 1º andar, no 1º andar vendiam as hortaliças e eu adorava enfiar-me naquelas cestas de vime enormes quando estavam vazias "Ai neta sai daí que te sujas toda", normalmente eram as cestas das batatas, lembro-me que eram pesadas. Ao fundo estava a zona que hoje de forma tão chique chamamos de "ménage" na altura era dos plásticos e das vassouras, e foi aí que às escondidas da mãe me compráste um 5 stars amarelo, não sabias para que é que eu queria uma coisa que andava para cima e para baixo, mas fizeste-me a vontade e em menos de nada arrependeste-te quando ao fazer uma das minhas manobras abri o lábio com o "raio do brinquedo", na semana seguinte abri de novo o lábio no mesmo sítio contra uma credência de mármore em casa da tia porque andava a correr de um lado para o outro.
Adorava andar pela Baixa contigo a ver os armazéns do Chiado e do Grandela, foi onde vi o primeiro homem estátua, deixavas-me correr a Bertrand porque já sabia ler aos 4 anos e meio, depois subia e sentava-me com o Pessoa e lá ia-mos dar de comer aos pombos do Camões com os restos de pão duro que sobrava lá de casa, sentia-me um espantalho com aqueles pombos todos em cima, seguíamos para o Bairro Alto e era certo a passagem pela senhora das "loiças finas", o armazém/loja de bebidas alcóolicas onde compravas uma garrafa de Chivas Regal ou Cutty Sark ao pai, mas das pequeninas que eu achava que eram para mim, aí aprendi mais sobre alcóol do que a maior parte das pessoas, como é que se sabe na infância que existe wisky, wiskey, e que o que é feito nos EUA não presta? Seguiamos caminho à drogaria do sr. Magi na esquina da rua da Rosa com uma outra que não me lembro para comprares sabão azul e branco porque isso é que lavava a roupa (além de que não tínhamos máquina), depois era também um pouco menos de sabão amarelo (ainda hoje cheiro esses sabões e lembro-me de ti) e enquanto tu metias a conversa em dia com as tuas conhecidas lá do sítio e o sr. Magi tentava impingir mais alguma coisa (ele só conseguia isso quando era a mãe que lá ia) eu aproveitava para cheirar tudo o que era detergente, químico e pó, brincar com as esfregonas e vassouras. Quando vias que eu já não conseguia parar quieta lá me levavas a comer uma cavaquinha ou uns beijinhos na padaria mais abaixo e depois casa.
Mas os dias não eram sempre assim, quando era dia de ir à Rua do Arsenal comprar bacalhau, feijão, grão ou azeite, aqueles homens ficavam furiosos porque eu gostava de meter as mãos nas sacas e sentir a textura e como os grãos me fugiam das mãos, ficava com as mãos cheias de pó e ainda hoje não suporto pó nas mãos, mexias nos bacalhaus e ainda me metia a escolher o que queria levar para casa, com a maior certeza deste mundo) a seguir cravava um geladinho e ía-mos buscar a mãe ao trabalho, tentava comer o corneto até ao trabalho dela mas ela apanhava-me pelo cheiro a morango ou pelo chocolate no canto da boca "Oh avó, ela não pode comer doces todos os dias", "Deixa lá a menina".
Juro que até hoje ainda não conheci ninguém que se parecesse contigo, se por um lado trabalhavas, por outro ajudavas a tomar conta de mim e ainda tinhas tempo para ser a dama de companhia da Condessa de Mafra enquanto eu aturava a presunsoça da bisneta dela, a Carlota, a quem me obrigás-te a pedir desculpa por lhe ter partido a viola na cabeça, ninguém lhe manda ter dito que eu trabalhava para ela porque tu trabalhavas para a bisavó dela, em casa explicaste-me que às vezes temos de pedir desculpa não por estar errado mas porque à gente que não é esperta o suficiente para perceber o que faz, para não me chatear com isso, que Deus depois entendia-se com a Carlota, e eu não me chateei mais com isso mas também nunca mais disse uma palavra àquela tipa e ainda lhe dava um olhar que a mãe dizia sempre "és fresca, és"
Foste a mais forte de todas as mulheres da família, pediste o divórcio nos anos 40 porque estavas farta de sofrer maus tratos, pegaste em ti e nos teus dois filhos e vieste servir para lisboa, conseguiste a tua casa, não era grande coisa mas era tua e ainda lá vivi, foste mãe de acolhimento de tantos miúdos, ainda conheci o último, o Vasco, educás-te o pai quando os meus avós claramente não sabiam o que faziam e foste o refúgio das tias, e da prima em tantas ocasiões.
Escondeste pessoas da PIDE nos vãos de escada do prédio, debaixo do nariz da Condessa, dos outros inquilinos e da própria PIDE que era só na rua de trás, matáste a fome a tanta gente e nunca faltou comida na mesa, às vezes trazias bocados de sabonetes das casas dos inquilinos ricos que não gastavam os sabonetes até ao fim, mas isso nunca me chateou, os cor de rosa eram meus, mas percebia que aquela malta não comprava no supermercado ou na mercearia porque não se vendia daquilo nos nossos sítios.
Tentavas meter paninhos quentes nas discussões dos meus pais porque nao querias que assistisse a gritaria e vulgaridade, sabias o que eu ficava triste e com medo.
Sempre me disseste para ser quem eu era mas para ter cuidado com as pessoas, cuidado com os sorrisos, cuidado com a quem chamase de amigo, cuidado com os falares mais doces.
Havia sempre um dito popular para cada ocasião, se chovia, se fazia sol, se ia a pé, se cheirava bem, se falava, se não falava...
Mas infelizmente um dia tiveste de ir viver com o avô porque a tua saúde estava a deteriorar-se de dia para dia, eram os diabetes, se pudesse, se os meus pais deixassem, tinha ido contigo, desse dia só me lembro que a casa estava escura, nem a Nossa Senhora de Fátima que brilhava no escuro (que eu teimava em esconder porque me assustava) lá estava, nem a foto do teu 2º marido nem a tua carteira de pele de coelho e em forma de coração.
Eu sei que por ti até criavas o mano mas já estavas tão velhinha quando ele nasceu, tinhas 90 anos, já estavas meio esquecida de muitas coisas que tinhas passado, merecias mais da vida, merecias mais de todos nós, mas pelo menos no fim tiveste o que sempre pediste, uma morte santa.
Para mim foste uma mãe, uma avó, uma amiga, és Lisboa, és a história porque me meço, e ainda hoje nos tempos mais complicados ainda me dizes, para ser quem sou, a gaiata endiabrada.
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